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MEDITAÇÃO DA GÊNESE

O Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência.
Merleau-Ponty

 

Uma cultura nasce quando tem força para proferir o discurso da gênese, isto é, quando é capaz de narrar a origem. Nossa cultura nasce quando a fundação é pronunciada pela palavra inaugural da Criação, com que se abre o Livro da Gênese:

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas.


Deus disse: “Haja luz” e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. (...) Deus disse: “que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente” e assim se fez. Deus chamou ao continente “terra” e a massa das águas “mares”, e Deus viu que isso era bom.

 

Com Oceanos Carlos Eduardo Uchoa nos lança em direção ao enigma de “No princípio”, nessa intemporal inauguração do tempo, quando as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas e a luz foi criada e separada das trevas. Oceanos nos dão a ver a gênese da luz, que emerge do fundo abissal das trevas. E ao nos dar a gênese da luz, nos dá a gênese das cores e das formas, material constitutivo da pintura.


Estamos diante de uma obra metafísica: nela se realiza uma meditação do olhar sobre a essência pura da luz, antes que a distinção dos quatro elementos aconteça – antes que haja água, terra, ar e fogo, ou antes que Deus reunisse as águas para formar os mares e as separasse da terra ou do continente, antes que fizesse haver firmamento com o fogo dos luzeiros, antes que houvesse água marinha com seres vivos, antes que houvesse a terra verdejante, e antes que existisse o ar frio ou quente. E antes que o homem e a mulher fossem criados. Oceanos vai em busca do instante da Natureza nascente, anterior à presença do homem e à diferenciação dos elementos, antes que houvesse Mundo. Ser de indivisão, a luz é o que não cessa de diferenciar-se em si e por si mesma, eclosão da visibilidade e promessa do visível vindo a si do fundo do não-visível. Indivisão diferenciadora, a luz  multiplica tudo que por ela vem à existência e é por isso que nas telas de Oceanos cada pincelada suscita outra que suscitará uma outra, indefinidamente, como o vento sobre os abismos.
Por isso mesmo, Oceanos é uma meditação sobre a essência da pintura  como gesto inaugural que recolhe uma memória mais antiga do que nosso olhar e nossa razão, pois é a memória da Natureza se fazendo antes de nós e sem nós, mas que somente as mãos e os olhos do pintor têm o poder extraordinário de nos fazer ver e de nos fazer sentir, pois o pincel de Uchoa, a parcimônia com que emprega as cores e a indeterminação das formas nos arrastam para o interior da tela, como se, numa vertigem, pudéssemos ser um e o mesmo que ela antes de sermos nós próprios. Somos arrancados da placidez de nossa individualidade pelo jogo do tormento e da serenidade da luz à procura de si mesma e que, nessa procura, nos chama para seu interior, mas esse interior é pura exterioridade, pois a  luz só tem existência em si  pondo-se fora de si. 


Estamos, pois, diante de uma experiência em pintura, se nos lembrarmos, como disse certa vez o filósofo Merleau-Ponty, que a experiência é um sair de si e um entrar em si cuja identidade é a definição precisa do ser do Espírito, definição que somente o Corpo do pintor nos pode oferecer. Gênese interminável, a luz, -- isto é, a visibilidade -- exige o trabalho criador do pintor – isto é, a aparição dos visíveis. E o pintor pode  responder ao esse apelo porque seu corpo, como o nosso, é feito da mesma polpa insondável que ela. Somos espíritos verdadeiramente encarnados.


Essa experiência em pintura realizada por Carlos Eduardo é efetivamente criação porque entre a realidade dada como um fato bruto e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento criador, no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visível venha à visibilidade, solicita o trabalho criador do pintor, que tateia ao redor de uma intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possui um modelo que garanta o acesso ao que é buscado, pois é a ação de pintar que  abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver, para ele e para nós, experiência da gênese do Ser. 

 

Oceano 1
Irrompendo do fundo da treva, em fendas e espasmos atormentados, aqui se cumpre a epifania da luz como força criadora: nada é ainda e por isso tudo está prometido na intensidade de um vir-a-ser de transparência e opacidade no qual cada forma e cada tom, à procura de si mesmos, perdem-se nos outros, interminavelmente.
Não a vemos somente, podemos ouvi-la se fazendo lá longe e tão junto a nós.
Postados diante da tela, que nos dá a ver o trabalho doloroso do parto de um mundo, vemô-la vir a nós para  nos ensinar o poder transcendente da gênese.
 Experiência da dor do nascimento.

 

Oceano 2
Agora, é a tela que está postada diante de nós, mas o poder dos traços verticais e do jogo das cores, ao mesmo tempo firmes e oscilantes, nos chamam para o interior do quadro.
Cada ínfimo traço, cada pequena parcela de luz e de cor nos arrastam rumo a um ponto virtual que não se encontra em parte alguma e cujo apelo não se limita ao nosso olhar, mas envolve nosso corpo por inteiro. Somos capturados pelo quadro, sem fuga possível. Ele nos puxa para dentro de si para que façamos o percurso inverso ao seu: nossa imersão responde à sua emersão; nossa entrega ecoa sua oferenda.
Experiência do abismo.

 

Oceano 3
Transparência: o interior e o exterior estão reconciliados numa profundeza de cristal. Com firmeza, força e doçura,  a tela vibra com alegria e nosso olhar, também pacificado, passeia pela serena sinuosidade das pinceladas. A luta e o tormento cederam lugar ao encontro.


Agora, as pinceladas entrecruzam verticalidade e horizontalidade – gênese do espaço – e, amplas, rumam para o fundo apenas advinhado que habita o centro cristalino. Cada traço, cada cor e seus tons – gênese da forma --  entregam-se à sua própria dissolução harmoniosa no regaço de uma totalidade acolhedora: cada parcela da tela deseja as outras e entrega-se a elas. O princípio e o fim se confundem, a diferenciação se realiza como totalidade imanente. Experiência do infinito.

 

Marilena Chaui

 

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